terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Crítica | Cinema Saraband (2003) Ingmar Bergman

Saraband (2003) nasce por modo de uma gestação de 30 anos. Sendo fruto de um sazonamento de uma produção, de enorme sucesso, exibida na televisão sueca: Cenas De Um Casamento (1973). O ponto de partida é a separação, por meio do divórcio, das personagens principais Marianne (Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson) que transitam para este filme. E com elas circulam toda uma série de ligações muito subtis. Destaque para uma garrafa de conhaque de Paula, a amante de Johan; as referências aos poemas de Johan, entre outros pormenores.
Para se compreender Saraband na sua totalidade, é necessário ver Cenas De Um Casamento. É inegável esta afirmação. Porém, não é imperativa. Ou seja, o que o torna uma obra excepcional é o facto de que se for visto de forma isolada, não dará ao espectador a sensação de que o filme lhe escapa. Não é dependente do seu congénere mais velho. O que ainda abrilhanta mais a estrela que ele é. Ele é filho de um outro filme, mas é um filho adulto à partida. Em Saraband, Bergman acrescenta duas personagens: o filho de Johan, com outra mulher, Henrik (Börje Ahlstedt) e a filha deste, Karin (Julia Dufvenius). O que dispersa o ar pesado, respirado neste drama, por mais personagens para além das duas que transitam para esta obra. Tal como em Cenas De Um Casamento, Ingmar Bergman, filma em grandes planos, típicos das filmagens de TV; utiliza a técnica da forte densidade dramática dos diálogos, dando corpo a uma construção assinalável no drama. Lembra uma influência dos dramas psicológicos das peças de teatro de Strindberg, e de Ibsen, seus conterrâneos nórdicos.
Este é um filme que nos pode remeter para um outro imaginário artístico. Isto por que o filme é divido em capítulos, partes separadas uma de outra, e outra de uma, e de outra de outra, etc.. até perfazer as 11 partes integrantes deste objecto narratológico. Incluíndo um prólogo, e um epílogo. Podia ser uma exposição de pintura pela sua divisão em quadros, ou, numa comparação mais próxima, uma peça de teatro de Strindberg separada em actos.
Representa uma obra de arte contemporânea, por um dos maiores problemas actuais: a falta de comunicação inter-humana. Ingmar Bergman faz comunicar este filme a partir de uma espécie de documentário, que Marianne materializa, até pela consciência que tem da câmara, no prólogo. Assiste-se, portanto, a uma anulação da 4º parede - conceito teatral - que lhe dá o lugar de narradora nesta viagem que faz à casa de campo de Johan. Sitada numa paisagem que é, por direito próprio, uma personagem na filmografia sueca em geral, e na estação predilecta nas filmagens de Bergman em particular - o Outono.
Voltando ao tema de comunicação, ou da não-comunicação, as personagens masculinas são incapazes de comunicarem entre si. Isto é, elas falam, mas nunca chegam a um lugar-comum. Quando confrontadas entre si atingem o auge desta incapacidade que as personagens deste filme possuem. O quadro/acto em que Henrik visita o seu pai Johan é lúcido sobre este aspecto. A profunda falta de comunicação pelo mau carácter de Johan, proveniente desde a adolescência de Henrik, para com o seu filho é de uma ácida hostilidade de meter arrepios. No jogo de homens-mulheres continua a não haver uma comunicação verbal saudável, mas quando o assunto é uma mulher, Anna, a mulher falecida de Henrik, assiste-se a um ligeiro aperfeiçoamento. Já na dança das duas personagens femininas conseguimos atingir uma comunicação que, embora não seja de completa verbalidade, atinge o seu ponto maior de proficuidade. Os gestos e carinhos falam, na relação de um género que se entende por outros sentidos - o feminino.
Outro elemento fílmico que não merece ser esquecido é o do compositor Bach - Bergman reserva-lhe até o seu nome para um capítulo. Grande parte da banda sonora é de composições suas. Destaque para a 5ª Sarabanda por violoncelo. Não só dá o nome ao filme este movimento de composição musical característico do barroco, como é tocada por um instrumento - o violoncelo, também ele característico deste movimento pelo compositor alemão neste período - que tem a sua importância, apenas por que existe nele. Mas, acima de tudo, por que esta sarabanda tem toda ela características do filme: é introspectiva e é nostálgica. O apenas é a metáfora para sublinhar que nada no filme de Ingmar Bergman é colocado de forma gratuita. Tudo o que aparece no ecrã desempenha a sua função de forma competente e inteligente, tal como os pormenores que transitam para este filme.
Uma obra artística de Ingmar Bergman, notável pela sua abordagem à humanidade humana, que insiste em viver semelhantes problemas familiares, não obstante as diferenças geracionais. E tudo isto com exímias interpretações que, enquadradas numa estética que de tão simples e deslumbrante, almejam a nobreza da arte. E cumpre a função maior de qualquer objecto artístico - o permitir uma séria reflexão sobre a vida.

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